Sherlock Holmes e a imaginação narrativa

 Dedução e imaginação narrativa

O método dedutivo  de Sherlock Holmes é complexo, pois há várias facetas, a saber: 

1. Observação. Dá valor aos pequenos detalhes, aquilo que as pessoas geralmente não prestam atenção (trifles - minúcias). 

2. Inferência.  Inferir as consequências  que decorrem dos fatos observados ou os expliquem. 

3. Levantamento de possibilidades. Tirando o impossível, o que sobrar, ainda que improvável, pode ter ocorrido. 

4. Formulação de hipóteses. 

5. Imaginação narrativa. 

6. Intuição. Quando os fatos e as deduções levam a um resultado possível, mas ele, ainda assim, sente que há algo errado. E por isso continua investigando, como no caso do Construtor de Norwood, em que inicialmente as pistas levavam a deduzir a culpa de John Hector McFarland, mas a intuição dizia que não era culpado. 


David Stuart Davies, em Bending the Willow - Jeremy Brett as Sherlock Holmes, em que o fã sherlockiano entrevista Jeremy Brett e acompanha algumas produções de episódios da TV Granada -  lembra da intuição: Holmes is able to make the most wonderful subliminal leaps. Holmes é capaz de fazer os saltos subliminares mais impressionantes. 

Claro que, às vezes, ao  omitir etapas da dedução - o que acontece na TV,  mas as etapas podem ser verificadas nos livros - a solução encontrada parece ter sido obtida  por mágica, mas não é assim.  Como o próprio Holmes diz, se ele continuar a ser tão cândido a ponto de explicar suas deduções rápidas, com todas as etapas, as pessoas vão pensar que é fácil. Como fazem quando ele explica. Também convém lembrar que, nos livros, a dedução é feita com extrema rapidez, como quando ele descobre a profissão e alguns traços de personalidade da pessoa observada. Devido ao hiperfoco, Holmes percebe em segundos, e inevitavelmente. Só às vezes as etapas são desdobradas  a posteriori, quando alguém pede para ele explicar.  

Cabe apontar que Jeremy Brett fazia questão de apresentar as deduções conforme aparecem no livro. Em um episódio, lembrado por Davies, embora o diretor achasse que não fosse possível transmitir o texto tal como no livro, Jeremy Brett afirmava que seria possível. Enquanto a equipe fazia um intervalo para almoçar na cafeteria, Brett ficou no estúdio e decorou em meia-hora a fala, que aparece fluente e perfeitamente no início de O intérprete grego, quando Holmes deduz que, afinal, Watson desistiu de investir em ações sul-africanas. 

Mas, como dissemos, a intuição também é usada, em alguns eventos que, apesar da dedução, Holmes fica encafifado com algo que doesn't seem right, não parece certo. E continua investigando.  

A importância da imaginação narrativa explicamos a seguir a partir do episódio Silver Blaze, tanto do livro quanto da série. 


O trecho a seguir contém alguns spoilers


Imaginação narrativa 

Em Silver Blaze, para encontrar o cavalo desaparecido em Dartmoor, Holmes exerce a imaginação narrativa, juntamente com a dedução. Ou seja, ele imagina uma pequena história que explique os fatos, desde, é claro, que ele tenha fatos, pois sempre reclama que não dá para trabalhar sem eles. Logo na chegada - na versão original, em texto, de Doyle - Holmes é o último a descer da carruagem (landau), pois fica 'sonhando acordado' - daydreaming - isto é, imaginando. 

Na versão da TV Granada, pequenas alterações são feitas, e Holmes é o primeiro a saltar da carruagem, já se levanta até antes dela parar de vez, mas o restante do trabalho imaginativo está presente. 

Ao examinar o local do incidente em que o treinador foi morto, Holmes descobre um objeto - um tipo de lamparina, ou melhor, wax vesta, uma mini-vela que parece um fósforo - que o Inspetor Gregory não havia percebido. E a descobre porque ele esperava encontrar, e esperava encontrar porque tinha uma narrativa (ou 'teoria').

Em seguida, Holmes diz que vai dar uma volta para respirar o ar fresco da tarde, e leva a ferradura de Silver Blaze - que o inspetor trouxera - e comenta, 'para dar sorte'. 

No moor (a paisagem típica de Dartmoor), ele e Watson conversam. Holmes parte de uma premissa - cavalos são gregários. Na consequência lógica, o cavalo sem o treinador iria procurar outros cavalos. Então, voltaria ao estábulo em King's Pyland ou iria aos estábulos em Mapleton. Como não foi ao primeiro, deve ter ido em direção ao segundo.

Então, Holmes imagina a cena: o cavalo caminhando na chuva. E pensando nessa estorinha, chega a algumas conclusões. Por exemplo, para buscar pistas, não adianta fazê-lo no solo em que estão, que é duro e seco. Mas logo adiante há um declive com solo mais fofo e que, portanto, deve ter formado lama. Os dois vão investigar, e Holmes logo descobre uma pegada, que combina direitinho com a ferradura de Silver Blaze.

Assim, a imaginação narrativa ajudou, e muito, a investigação a partir de observação, fatos e lógica. 

Diz o detetive: "Veja o valor da imaginação. [...] Nós imaginamos o que poderia ter acontecido, agimos com base na suposição, e nos encontramos justificados". 

Na continuidade do episódio, Sherlock Holmes tem já na mente a história do que aconteceu neste caso, mas pacientemente vai buscar várias pistas para confirmar as suposições, e deixa escapar a conta-gotas o que sabe, deixando seus companheiros perplexos. 


Holmes e a Literatura 

Falamos um pouco da imaginação narrativa. Embora Holmes critique a retórica literária de Watson, ele discretamente a aprecia e também lê literatura. Cita Goethe, Flaubert, George Sand ...  afinal, obras literárias estimulam a imaginação.

No final de The red-headed league (A liga dos ruivos), Holmes esclarece Dr. Watson: ''L'homme c'est rien, l'ouvre c'est tout', escreveu Gustave Flaubert a George Sand." [O homem não é nada, a obra é tudo]. A citação lhe é congenial, pois  ilustra sua atitude de buscar fugir do tédio das coisas comuns da vida. Seu trabalho de consultor-detetive é sua obra, há essa inclinação estética. Holmes é um esteta. Fica claro por que o violino o ajuda a pensar. Estímulos estéticos fazem parte do método. A criatividade, a não-linearidade, a profundidade são assim estimuladas. 

Ele também cita Shakespeare, para se consolar e em memória a seu amigo italiano vitimado pela máfia: 


Golden lads and girls all must,

As chimney-sweepers, come to dust. 


em The Red Circle [O círculo vermelho], filmado na 7ª temporada da TV Granada. O verso inicial do poema de Shakespeare é Fear no more the heat o’ the sun .


"Rapazes e garotos de ouro também 

como os limpadores de chaminés vão 

 desfazer-se em pó".


A Literatura, e a arte em geral, também ajudam a enfrentar os sofrimentos humanos. Que, como detetive, ele sempre se depara e tem de lidar. 


Elisa Sayeg  

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